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Acervo Hélio Oiticica/Reprodução
A sobrevivência de Oiticica
Por Lisette Lagnado
Ainda não sabemos o que restou do incêndio que devastou a casa do irmão de Hélio Oiticica, no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, onde ficava guardado um acervo de mais de mil peças, entre obras e arquivo, além dos negativos de seu pai e fotógrafo José Oiticica Filho. O que eu sei é que recebi a notícia na manhã do dia 17 de outubro como uma notícia de morte. Foi assim que me dei conta que, até então, eu me relacionava com um artista vivo.
Quando Leonilson morreu em 1993 e um grupo de amigos tomou a decisão de fundar, em caráter de urgência, um lugar que pudesse receber eventuais interessados em sua obra, o Projeto HO (Hélio Oiticica) era a referência nacional como modelo de ação para cuidar da memória de um artista brasileiro.
Sem nenhum apoio da parte de instituições, todos nós, intelectuais ou artistas, acompanhávamos a vitória da prática do mutirão, uma das características mais extraordinária da organização social brasileira, essa forma de solidariedade baseada na conjugação de obrigação moral com recursos mínimos, que Antonio Candido consagrou nas linhas de "Os Parceiros do Rio Bonito".
Graças ao sentimento de luta por um patrimônio cultural, Lygia Pape, Waly Salomão e Luciano Figueiredo haviam conseguido levar ao mundo um acervo a ser decifrado. De fato, quando pedi ajuda à Pape, a grande retrospectiva “Hélio Oiticica” já havia passado pelo Witte de With Center for Contemporary Art (Rotterdã), a Galerie Nationale do Jeu de Paume (Paris), a Fundació Antoni Tàpies (Barcelona), o Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa) e ainda iria até o Walker Art Center, de Minneapolis, em 1994, até aportar no Centro que levaria o nome do artista no Rio de Janeiro, em 1996.
Portanto, Oiticica já havia sido consagrado internacionalmente quando Ricardo Ribenboim, diretor-executivo do Instituto Itaú Cultural, por sugestão do professor Celso Fernando Favaretto, me chamou para uma proposta de pesquisa e trabalho que mudaria minha vida. Ciente da importância de Oiticica não somente como artista, mas também como teórico, há exatos dez anos, em setembro de 1999, seu irmão Cesar selou uma parceria entre a família e o Itaú, no sentido de preservar os escritos do artista e disponibilizá-los progressivamente em um website.
Na qualidade de coordenadora desse arquivo, me coube ler e reler caixas de cadernos, fichários e notebooks, que foram levados até a avenida Paulista e armazenados no armário de uma pequena sala que se converteu no meu “ninho” até junho de 2002.
Lá, com a ajuda de quatro jovens pesquisadores, elaborei a ficha catalográfica que serviria de matriz para registrar o conteúdo de cada manuscrito, em sua maioria com diversas versões datilografadas e corrigidas pelo autor. O nome de “Programa Hélio Oiticica” foi escolhido para criar uma analogia entre o modo como o artista sistematizou os conceitos de seu “Programa Ambiental” e a navegação via internet, que permitia um passeio labiríntico, não-linear.
Tendo recebido o material sem nenhuma ordenação cronológica, o trabalho de sistematização levaria um tempo inestimável se tivesse de passar por uma leitura total até poder depreender quais seriam os campos a serem criados na ficha técnica. O método que inventei para o tombamento surgiu justamente a partir desse caos inicial. Ajudou-me a me libertar das periodizações que pautam toda e qualquer narrativa histórica.
Trabalhando com um arquivo ainda em estado bruto, era possível mergulhar imediatamente na simultaneidade de suas invenções, no sentido vital de uma escrita cuja originalidade se deve à motivação de um pensamento sempre “in progress”. Não obstante, era impossível evitar solicitações de exposições nacionais e internacionais, que interrompiam a rotina do trabalho, exigindo saídas de documentos que ainda não haviam sido tombados.
Na semana da saída de Ribenboim, que colocou toda sua habilidade diplomática a serviço desse projeto e me deixou trabalhar com a máxima liberdade na concepção de um software específico, recebi a visita da curadora Mari Carmen Ramírez, a quem mostrei o que vinha sendo feito em matéria de arquivo digital.
Responsável pela arte latino-americana no Museum of Fine Arts de Houston (MFAH) -o mesmo que comprou grande parte da arte construtiva e neoconcreta brasileira do colecionador Adolpho Leirner, não sem provocar gritos por uma “perda” em nível nacional-, Ramírez foi tomada de surpresa pela envergadura da iniciativa.
Em dezembro de 2006, após cinco anos de pesquisa para o catalogue raisonné do artista, o MFAH apresentou a mostra “Hélio Oiticica: The Body of Color”, que seguiria para a Tate Modern (Londres), como primeira etapa de um novo esforço de sistematização da obra do artista, em parceria com o Projeto Hélio Oiticica, mas já sem a presença de Lygia Pape e Waly Salomão.
No simpósio realizado no dia 2 de junho de 2007, em Londres, Mari Carmen Ramirez, também curadora e diretora do Centro Internacional para as Artes das Américas (EUA), deixou de comparecer à mesa. A sua justificativa para não abrir o simpósio de seu próprio trabalho foi publicada em Trópico (leia abaixo no Link-se).
O panorama é outro, se entendermos que os arquivos também foram destruídos pelas chamas. Qual será a reorganização de um legado que transcende a manufatura de objetos artísticos? Nunca gostei de me reler. No site do Itaú Cultural, reencontro uma frase que escrevi sem aviso prévio do destino: “Esses documentos foram trazidos para São Paulo para serem catalogados, digitalizados e tratados para que sua deterioração fosse retardada”.
Findo o contrato, além dos disquetes, que continham informações muito mais detalhadas e complexas do que a catalogação visível na internet, entregamos centenas de caixas novas, especialmente confeccionadas para acondicionar cada documento higienizado. Uma a uma, as páginas de todos os "NTBK" (notebooks), deixados sob a guarda do Itaú Cultural, foram intercaladas com folhas de pH neutro e recomendações para futuro restauro.
Se as condições materiais para quem ama e estuda arte já eram precárias, o incêndio abriu as portas da ficção para uma legião de admiradores do “além da arte” de Oiticica, que, vagando como “detetives selvagens” do escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003), escreverão textos assombrados por uma catástrofe.
No meu breve percurso como pesquisadora da arte brasileira, me vi estimulando os mais jovens a pensar sua própria produção e tomar notas, não somente do processo criativo, mas também do significado de sua inserção numa conjuntura histórica. Como poderia explicar a importância de resistir à devoração do mercado e a necessidade de dedicar, dentro de um ofício que tanto mudou dos anos 1960 até hoje, um tempo de construção cultural para um patamar diferenciado de reflexão?
Testemunhei situações muito diferentes quando precisei estudar Iberê Camargo, Mira Schendel, Arthur Bispo do Rosario, Raimundo Colares e, mais recentemente, Flávio de Carvalho, Lina Bo Bardi e Sergio Bernardes. Dessa minúscula lista, talvez só um deles esteja descansando em paz.
Publicado em 18/10/2009
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Lisette LagnadoÉ crítica de arte e professora do Mestrado em Artes Visuais da Faculdade Santa Marcelina, integra o Conselho Consultivo de Arte do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) e é editora de Trópico e da seção "em obras" desta revista. Foi curadora da 27ª Bienal de São Paulo e coordenadora do Arquivo Hélio Oiticica (Projeto HO e Instituto Itaú Cultural). Publicou "Leonilson - São Tantas as Verdades" (DBA), entre outros livros.
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